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Sobre o que escreveria, senão o meu passado, ao longo do qual transcorreram os eventos da história recente, os quais presenciei? Aos poucos, na sucessão dos fatos, nos apercebemos que nossos pensamentos são irrelevantes, e não há motivos para orgulho ou vaidades. Apenas sentimentos permanecem válidos, testemunhando o passar dos anos, as emoções sentidas, as relações
verdadeiras e as perdas que sofremos…

Ahhh… as perdas… aquele pequenino ser trazido a este mundo era pleno de sonhos e desejos capazes de revoluções, projetos, conquistas, realizações inimagináveis! Poderia transformar o mundo, vencer quaisquer obstáculos, captar inesgotáveis conhecimentos, escrever, construir, compor… percorrer
distâncias infinitas… mas não. As perdas se sucedem em nosso caminhar, inexoráveis… e a cada dia, em cada batalha, toda essa energia se esvai lentamente, imperceptivelmente… Ao longo do percurso desta vida nos alimentamos de pequenas vitórias, de ilusões que apenas nos impedem de esmorecer e desistir desta jornada. E assim, perseveramos, supondo-nos eternos, imortais, invencíveis… ledo engano.

A vida é efêmera, e o destino de todo ser humano é apenas um. Nada direi, porém dos meus percalços, daquelas batalhas perdidas, que a dor já foi bastante para sofrer e esquecer. Direi das alegrias, seduções do espírito e da energia sutil emanada do prazer, a que poderíamos chamar, simplesmente, alma, para confundir os crentes e iludir-nos a nós próprios.

Nasci no interior, em uma pequenina cidade – não direi nomes nesta história para não quebrar o encantamento deste enredo inusitado – mas logo me mudei,sem conhece-la. Nenhuma lembrança tenho dela para relatar a vocês, e fica aqui apenas o registro deste nascimento sem presença. Mas foi no interior que se moldou meu caráter e minha personalidade, entre pessoas simples e humildes, generosas por natureza e por destino, e sem a maldade dos tempos atuais.

Começava, então, a segunda metade do século XX, e o mundo se refazia dos horrores da guerra, que chegou ao Brasil apenas por capricho de circunstâncias que passo a relatar. Naquele tempo se encerrava a Era Vargas, de contradições e conquistas sociais. Por um lado, a personalidade indômita daquele gaúcho com botas de soldado e sonhos de general. Por outro, as heranças coloniais e os coronéis de fato, trazendo o vírus endêmico da corrupção, disseminado por todas as esferas do poder público e das oligarquias familiares, enriquecidas pelo vício das conquistas territoriais pelo trabalho escravo e pela exploração indiscriminada dos recursos naturais deste solo sagrado.

Não se sabe se Getúlio se matou de vergonha, por fingir que nada acontecia à sua volta, ou por desilusão, por perceber ter sido enganado por todos que o cercavam e alimentavam suas ilusões. Mas sua imagem permaneceu sagrada na alma dos brasileiros, como o caudilho populista que resgatou os
trabalhadores e lhes concedeu o status de cidadãos.

Da guerra também resultou a perseguição de imigrantes italianos, japoneses e alemães, trazidos ao Brasil em fins do século XIX, para substituir os escravos negros, que os indígenas já haviam sido massacrados por religiosos, madeireiros, soldados, fazendeiros, bandeirantes e toda sorte de aventureiros e
colonizadores, que lhes roubaram as terras, as mulheres, as riquezas, a cultura, as tradições e a dignidade humana, desde os primórdios da invasão portuguesa. Perdurando o terror por cinco séculos, até os dias atuais. Tais imigrantes, fugidos de sua terra natal em busca de trabalho e oportunidades, foram confundidos com os autores do terror da guerra e da coalizão do Eixo Roma – Berlim – Tóquio, contaminado pelo nazi fascismo.

Mas é do Brasil que falamos, daquele em que eu vivi. E lá, no sertão de nossa terra, presenciei a chegada da estrada de ferro que deveria escoar a produção de café, mas este já estava em decadência devido à Grande Depressão de 1929, e milhões de toneladas de grãos haviam sido queimadas nos barracões do
Instituto Brasileiro do Café, e fazendeiros se matavam pelo desespero da falência de seus negócios e a ameaça de viverem na miséria.

Na inocência de minha infância recém iniciada nada disso importava, e eu me divertia nos barrancos e construções da Companhia Paulista de Estrada de Ferro. Lá, onde eu morava, colonos japoneses ainda colhiam café, algodão e amendoim, certamente sem saber que seus patrões se suicidavam em
desespero. E eu e as crianças do meu tempo soltávamos pipas, jogávamos bolinhas de gude, arrastávamos nossos carrinhos de rolimã, brincávamos de esconde-esconde, girávamos os piões, jogávamos bilboquê e chafurdávamos na lama das enxurradas nas ruas sem calçamento, dando asas à nossa imaginação infantil, despreocupadamente.

A escola, bem como quase todos os prédios públicos, era de madeira sobre estacas, sob as quais as galinhas ciscavam e espalhavam piolhos pela criançada. Os banheiros eram casinhas de madeira com um buraco no meio, onde sentávamos para fazer as nossas necessidades. O pátio era amplo e de terra, onde brincávamos de pique no recreio, fazendo a maior algazarra sob os olhares ameaçadores dos bedéis. Minha mãe foi minha professora e me ensinou a ler, escrever, fazer contas e cuidar de meus materiais de estudo.

Meu pai era bancário e foi parar naquele fim de mundo como punição por denunciar as safadezas de um gerente apadrinhado por Ademar de Barros, que era interventor no governo de São Paulo. Pois é… já havia corrupção naquele tempo, e Ademar era conhecido pelo povo como aquele que “rouba, mas faz!”.
Hoje, talvez fosse canonizado pelo Papa pela “inocência de suas “façanhas” e pedaladas fiscais para acobertar os desvios de verbas públicas…

Foram anos inesquecíveis pelos amigos que tive, pelo meu cãozinho Teco, pelos folguedos infantis, pela liberdade de correr e despencar de bicicleta pelo aterro da estrada de ferro, por jogar bola de meia com a molecada. Mas foi também, e principalmente, pela vida simples do interior, sem tecnologias eletrônicas, sem luz elétrica, sem trânsito congestionado, quase sem notícias de violência, onde as pessoas se visitavam todos os dias, de surpresa, sem necessidade de avisar, e eram recebidas com um cafezinho feito na hora, bolos e quitutes, e se sentavam sem pressa, para “jogar conversa fora” e reforçar a amizade.

Naquela época, o Brasil era um país predominantemente agrário, rural, com cidades pequenas como a minha, e pouco mais de 50 milhões de habitantes. A população do mundo mal atingira os dois bilhões e meio de habitantes, um terço da atual. A televisão chegava ao país, em preto e branco, com aqueles tubos enormes e muito chuvisco na tela, funcionando poucas horas todas as noites, mas não na minha cidadezinha, pacata e serena. Lá, o que havia era o rádio, com programas de notícias locais, música caipira, novelas narradas por artistas e muita propaganda do comércio. O rádio também passava recados entre as pessoas que procuravam os locutores. E o futebol era narrado como uma metralhadora! Para ser locutor esportivo era preciso falar muito rápido!

O telefone era de magneto, acionado por uma manivela, com o fone pendurado por um fio trançado e separado do bocal, que era fixo. Do outro lado da linha tinha a telefonista: ao girar a manivela a moça atendia e perguntava com quem se queria falar. Nomes, não números! E ela conectava um pino em uma placa com furos. Cada par de pinos conectados era uma ligação em andamento.

As casas não tinham luz elétrica: tínhamos lampiões à querosene. Era um recipiente de vidro, que se alongava por uns 30 a 40 centímetros, com um furo na ponta. Na base ficava o querosene, separado do tubo por uma “camisinha” que tinha uma fita imersa no líquido. Ao acender a fagulha, a camisinha ficava
incandescente e havia um pequeno botão que, ao girar, aumentava ou diminuía a intensidade da chama. A luz do lampião de querosene era mágica, e iluminava as salas com uma coloração suave, que se perdia na escuridão…

Aos domingos, todos iam à missa, com suas melhores roupas, e o padre nos esperava na porta, cumprimentando cada família pelos seus nomes. A igreja sempre estava cheia de fiéis, e a missa era rezada em latim, com o padre de costas para o público. Parte da missa era cantada, também em latim, no formato dos cantos gregorianos. A plateia ouvia sem entender, repetindo parte das orações e admirando o saber dos padres. Não havia evangélicos.

Sempre estudei em escolas públicas. As escolas particulares eram para os estudantes que não conseguiam passar de ano, ou tinham sido expulsos por indisciplina. Os nomes das séries eram diferentes: o Grupo Escolar era responsável pelo curso primário, de quatro anos de duração. Depois vinha o Ginásio, com mais quatro anos. Entre os dois, para alunos com dificuldade, havia a 5a série. Em seguida havia o Colégio, que se dividia em Clássico (preparatório para as faculdades de Ciências Humanas) e Científico (Biológicas e Exatas). Os que escolhiam o magistério (professores) existia o Curso Normal, também de nível médio. Cada faculdade tinha seu próprio vestibular.

Sempre fui um bom aluno, graças à minha mãe professora, e a meu pai, que era um sábio, e sempre tinha respostas para todas as nossas indagações. Meu pai tinha muitos livros, várias coleções de romances, poesias, literatura clássica, Monteiro Lobato, Eça de Queiroz, Enciclopédias e livros comprados para nos
estimular a leitura, de acordo com nossa idade. Tinha, também, o gosto pela Arte e nos estimulou a música. Minhas irmãs estudaram piano durante mais de uma década, mas eu nunca consegui tocar nenhum instrumento. Falha minha…

Sim, fui um bom aluno e nunca repeti de ano. Naquela época não havia a tão questionada “progressão continuada”! Se o aluno não atingia a nota mínima era reprovado. Ninguém passava de ano sem mérito.
Nas salas de aula, cada uma com cerca de 40 alunos, o professor era respeitado e admirado! A indisciplina era punida severamente com a palmatória, uma vara que era usada para bater na mão dos maus alunos. O diretor de minha escola punia os piores alunos com um castigo cruel: colocava-os de pé, com os braços abertos, e ia colocando cadernos e livros sobre suas mãos até que eles não aguentassem mais. Cruel, desumano, mas não havia indisciplina nem desrespeito ao professor.

Devido às limitações dos meios de comunicação, o rádio era a figura presente em todos os lares, e permanecia ligado o tempo todo. Servia de despertador e de companhia para quem ficasse em casa. Mas havia também a figura do radioamador. Meu pai tinha um desses equipamentos, que ocupavam uma
pequena sala, conhecida como “shack”, e era composta de um receptor, um transmissor e um aparelho de sintonia, que variava a frequência das ondas eletromagnéticas, criando a possibilidade de vários grupos se comunicarem simultaneamente em diferentes frequências. Do lado de fora, atravessando todo o terreno da casa, uma antena era estendida entre dois postes, com uma distância de aproximadamente 40 metros, que era a extensão da onda.

Os radioamadores constituíam rodadas de conversas entre localidades distantes, e isso fazia desse hobby um serviço de utilidade pública, através do qual as pessoas falavam com seus parentes e amigos, sem depender da telefonia, precária e cara para a maioria das famílias. Todos os dias meu pai se conectava com a “Rodada da Amizade”, uma espécie de rede social daquela época. Eram dezenas de pessoas em todo o Brasil… A solidariedade era a marca registrada dessa sociedade dos anos 1950. Não se cobrava por tais serviços. Em minha cidade, já pelo fim da década de 50, foi instalado um enorme motor de navio, adaptado para produzir energia elétrica a partir da queima de óleo diesel. Esse motor funcionava por algumas horas, depois do entardecer, e passamos a tomar banho quente e ter luz elétrica na sala e nos quartos. Mas a geladeira continuava funcionando com um motor a querosene, o fogão era de lenha, o ferro de passar usava brasas incandescentes e o café era torrado e moído em casa. A água era retirada de um poço com um aparato que tinha uma roldana, uma corda e um balde, depois substituído por motor elétrico.

Nesse estilo de vida simples, os laços familiares eram mantidos pela autoridade dos pais e pelo permanente diálogo com os filhos. As refeições eram feitas sempre em casa e só se servia à mesa quando todos estavam sentados. Não se deixava comida no prato, o que era uma falta grave. As crianças iam para a cama às oito da noite e se levantavam bem cedo. O transporte de casa para a escola, assim como para qualquer lugar, ou era a pé, ou de bicicleta ou de charrete. Poucos e caros eram os carros de aluguel, os táxis de hoje, e só os ricos usavam.

Nossas festas eram comunitárias, entre os colegas de trabalho de meus pais, inclusive o Natal, Ano Novo, Aniversários, Páscoa e datas religiosas. Olhando para esse passado eu percebo o quanto a televisão, o celular, os notebooks e os tablets contribuíram para a dissolução das famílias e para a mudança de costumes sociais, as relações de amizade e de trabalho! Hoje, nossas amizades são virtuais e se desfazem com um simples gesto de bloquear aquele que era amigo e disse alguma coisa que interpretamos como ofensa, sem perguntar a verdadeira motivação do ex-amigo. Temos “amigos” no mundo inteiro, mesmo sem saber falar suas línguas, usando um tradutor instantâneo que traz uma mensagem corrompida e interpretamos erroneamente. Falamos banalidades, fazemos e desfazemos amizades, interrompemos as falas sem nos despedir, curtimos, compartilhamos, xingamos pessoas sem nada saber sobre elas. Assim é a nossa rede social, repleta de vícios e vaidades!

Minha cidadezinha ficava próxima do rio Paraná, fazendo divisa entre os estado de São Paulo e de Mato Grosso, que ainda não tinha sido dividido ao meio. Para lá íamos, eventualmente, aos fins de semana, e nos hospedávamos em um hotel de madeira sobre palafitas que, na época das chuvas, ficava ilhado sobre as águas do rio. Às suas margens a mata ciliar (de galeria) era densa e extensa, povoada de animais selvagens, como porcos do mato, veados, antas, cobras e onças pintadas. Não era raro ver pegadas de onças ao redor do hotel, mas a caça era tão abundante que elas não incomodavam os hóspedes. Algumas poucas vezes atravessamos o caudaloso e perigoso rio em uma balsa, sustentada por tambores vazios de óleo, e cheia de carga e de passageiros. Do outro lado do rio havia uma aldeia indígena ainda não contaminada pelos nossos defeitos e problemas. Viviam da pesca, da caça e da coleta de frutos, sementes e raízes, além de cultivar sua pequena roça de mandioca, como todos fazem ainda hoje em todo Brasil. E faziam artesanato para os raros turistas como nós.

Em 1958 houve a comemoração do cinquentenário da imigração japonesa. A colônia de imigrantes era grande em nossa cidade, e eles trouxeram artistas do Japão, com suas roupas típicas, seus instrumentos musicais primitivos e seus rituais sofisticados e incompreensíveis para nós. Música, teatro, competições
esportivas, dança… ali era um pedaço do Japão durante várias semanas. Fiquei tão impressionado com aquela beleza cênica, os trajes exóticos e as mulheres que isso influenciou a minha vida para sempre. Anos depois, estudei a língua, a literatura, a história e a cultura japonesa, e me casei com uma descendente de imigrantes. Até hoje tenho gratas lembranças desse tempo fantástico!

Memorial de Ulysses

Tenho refletido com frequência sobre o papel de Ulysses em nossas vidas. Já se passaram mais de 18 anos desde que ele se foi para sempre, mas permanece vivo em cada um de nós, inspirando-nos a seguir seus passos e honrar seu nome. Ulysses não deixou nenhum livro sobre suas próprias crenças, seu pensamento e sua missão nesta vida. No entanto, seu pensamento reverbera em nossas mentes como se fosse uma lembrança de que não podemos esmorecer sem que aqueles que geramos tenham assimilado a filosofia que nos guiou até aqui…

Não falo de seu caráter incorruptível, nem de seus incontáveis exemplos de vida, mas de sua alma, sua essência cósmica, seu espírito imortal que nos conduz, silenciosamente, pelas veredas dessa terra tão descaracterizada, pobre de pensamentos, fútil e desinteressante. Falo desse ser de luz que nos ilumina a jornada, mesmo que não possamos enxergar o destino, muito à frente…

Por que não nos desviamos do caminho? Ou então, se nos perdemos, por que o reencontramos na penumbra dos sonhos, curiosamente estranhos e, ainda assim, motivadores, a ponto de reavaliarmos nossa missão e propósito inarredável? Até parece que, na escuridão de nossas almas, surgem as luzes dos faróis nas ocultas pedras de naufrágios, a impedir que a nau desgovernada dessa vida reencontre sua rota, ou derrota, no pronunciar dos marinheiros…

Sabemos não existir unanimidade neste “vale de lágrimas” das religiões dos humanos, nem Ulysses foi uma exceção a essa regra, mas nosso mestre teve o mérito de enfrentar aqueles poderosos que surgiram em seu caminho, mesmo às custas de muito sofrimento, de si e sua família, percorrendo lugares distantes nos esquecidos rincões paulistas do passado. E se fez tanto pelo seu temperamento e caráter, também nos ensinou a sermos felizes onde pouco havia senão pessoas simples e solidárias. A falta de recursos, como energia elétrica, não afetou a nós, ainda crianças, nem à nossa mãe querida, que nos ensinou as lições básicas de qualquer ser humano. Na escuridão das noites, brincávamos ao redor dos pais, apreciávamos as estrelas, ouvíamos estórias de nossos avós e nossos pais…

Assim a vida transcorria em paz, as amizades sinceras surgiam dessa convivência humilde, e a beleza incomparável da natureza se manifestava em nossos corações… foram esses anos que nos ensinaram algo que não existe mais: é na simplicidade da vida que reside a verdadeira amizade e o legítimo amor entre os seres humanos… foi lá, nessa pequena cidade, que cultivamos os valores que nortearam nossas vidas…

Setenta anos se passaram, e esse mundo já não é mais um paraíso inocente… a pureza das almas desapareceu, ou foi substituída pela vaidade, pelo orgulho, pela futilidade, pela inconsistência dos relacionamentos entre os seres humanos… a paz já não mais existe; as amizades puras também desapareceram; a generosidade desinteressada idem… o que restou foi a ganância, a ambição, o desprezo pelos mais fracos, o imediatismo dos atos e a impermanência dos valores humanos…

O que nos reserva o futuro de nossos descendentes? Por quais transformações haverão de passar para superar a devastação irreparável desse mundo onde vivemos? O que será feito das famílias humanas, se as múltiplas relações entre as pessoas se deterioram incessantemente? Por que ter filhos, se animais de estimação tomaram o lugar das crianças nessas instáveis relações? E as guerras de qualquer natureza, entre paises, entre religiões, entre ideologias, entre outros povos dispersos pelas diásporas de fragmentos populacionais foragidos dos preconceitos hostis?

Volto a invocar a memória de Ulysses, nosso mestre, nossa luz, nossas verdades, nosso destino quase impossível, para buscar alguma possibilidade de sobrevivência para nossos descendentes… se estamos no fim da caminhada e nossos exemplos já não permitem dar-lhes esperança, ao menos a trajetória dessas vidas que se extinguem poderiam lhes dar uma tênue esperança, um breve lampejo de orientação, um mínimo de desejo de resgatar aquilo que cultivamos durante toda nossa jornada neste mundo…

Memorial de Ulysses

Tenho refletido com frequência sobre o papel de Ulysses em nossas vidas. Já se passaram mais de 18 anos desde que ele se foi para sempre, mas permanece vivo em cada um de nós, inspirando-nos a seguir seus passos e honrar seu nome. Ulysses não deixou nenhum livro sobre suas próprias crenças, seu pensamento e sua missão nesta vida. No entanto, seu pensamento reverbera em nossas mentes como se fosse uma lembrança de que não podemos esmorecer sem que aqueles que geramos tenham assimilado a filosofia que nos guiou até aqui…

Não falo de seu caráter incorruptível, nem de seus incontáveis exemplos de vida, mas de sua alma, sua essência cósmica, seu espírito imortal que nos conduz, silenciosamente, pelas veredas dessa terra tão descaracterizada, pobre de pensamentos, fútil e desinteressante. Falo desse ser de luz que nos ilumina a jornada, mesmo que não possamos enxergar o destino, muito à frente…

Por que não nos desviamos do caminho? Ou então, se nos perdemos, por que o reencontramos na penumbra dos sonhos, curiosamente estranhos e, ainda assim, motivadores, a ponto de reavaliarmos nossa missão e propósito inarredável? Até parece que, na escuridão de nossas almas, surgem as luzes dos faróis nas ocultas pedras de naufrágios, a impedir que a nau desgovernada dessa vida reencontre sua rota, ou derrota, no pronunciar dos marinheiros…

Sabemos não existir unanimidade neste “vale de lágrimas” das religiões dos humanos, nem Ulysses foi uma exceção a essa regra, mas nosso mestre teve o mérito de enfrentar aqueles poderosos que surgiram em seu caminho, mesmo às custas de muito sofrimento, de si e sua família, percorrendo lugares distantes nos esquecidos rincões paulistas do passado. E se fez tanto pelo seu temperamento e caráter, também nos ensinou a sermos felizes onde pouco havia senão pessoas simples e solidárias. A falta de recursos, como energia elétrica, não afetou a nós, ainda crianças, nem à nossa mãe querida, que nos ensinou as lições básicas de qualquer ser humano. Na escuridão das noites, brincávamos ao redor dos pais, apreciávamos as estrelas, ouvíamos estórias de nossos avós e nossos pais…

Assim a vida transcorria em paz, as amizades sinceras surgiam dessa convivência humilde, e a beleza incomparável da natureza se manifestava em nossos corações… foram esses anos que nos ensinaram algo que não existe mais: é na simplicidade da vida que reside a verdadeira amizade e o legítimo amor entre os seres humanos… foi lá, nessa pequena cidade, que cultivamos os valores que nortearam nossas vidas…

Setenta anos se passaram, e esse mundo já não é mais um paraíso inocente… a pureza das almas desapareceu, ou foi substituída pela vaidade, pelo orgulho, pela futilidade, pela inconsistência dos relacionamentos entre os seres humanos… a paz já não mais existe; as amizades puras também desapareceram; a generosidade desinteressada idem… o que restou foi a ganância, a ambição, o desprezo pelos mais fracos, o imediatismo dos atos e a impermanência dos valores humanos…

O que nos reserva o futuro de nossos descendentes? Por quais transformações haverão de passar para superar a devastação irreparável desse mundo onde vivemos? O que será feito das famílias humanas, se as múltiplas relações entre as pessoas se deterioram incessantemente? Por que ter filhos, se animais de estimação tomaram o lugar das crianças nessas instáveis relações? E as guerras de qualquer natureza, entre paises, entre religiões, entre ideologias, entre outros povos dispersos pelas diásporas de fragmentos populacionais foragidos dos preconceitos hostis?

Volto a invocar a memória de Ulysses, nosso mestre, nossa luz, nossas verdades, nosso destino quase impossível, para buscar alguma possibilidade de sobrevivência para nossos descendentes… se estamos no fim da caminhada e nossos exemplos já não permitem dar-lhes esperança, ao menos a trajetória dessas vidas que se extinguem poderiam lhes dar uma tênue esperança, um breve lampejo de orientação, um mínimo de desejo de resgatar aquilo que cultivamos durante toda nossa jornada neste mundo…

A Bicicleta

Hoje percebo o quanto a bicicleta faz parte de minhas memórias; ainda pequeno ganhei uma de meu pai, e até me lembro de sua marca: Merckswiss (acho que era assim que se escrevia). Era pequena e azul, e eu me equilibrava nela com muita dificuldade, mal tocando a ponta do pé no chão, ao parar.

Foi nessa bicicleta que quebrei meu dente; uma árvore, em meu caminho, foi a culpada; e caí, batendo a boca no “guidon”. Mas nem por isso desisti de minhas duas rodas, que me acompanharam por toda vida. Cheguei a pensar até em ser um atleta, ou um artista, sei lá, contracenando com a “magrela” pela vida afora. Depois passou, e me esqueci da companheira, que ingrato!

Em Dracena, interior de São Paulo, aprendi a andar, a correr pelo aterro da estação de trem, em construção. Descíamos em grupo pela sua encosta em desabalada carreira e só mesmo o acaso nos livrava das consequências dos acidentes “inevitáveis”. Perambulávamos pelas ruas em bandos de crianças, meninos e meninas, sem preocupação; não havia o risco dos automóveis, pois a pacata cidadezinha tinha uma pequena frota de veículos, geralmente táxis, que andavam vagarosos pelas ruas de terra, contracenando com as charretes puxadas a cavalos.

Dracena, Panorama e Ofayé-Xavante

Quando me mudei para Ribeirão Preto, certo dia assisti um maluco ficar dias seguidos girando em uma praça, sobre um tablado, na frente do Theatro Pedro II, demonstrando sua resistência e habilidades para o povo admirado! Havia poucas opções de diversão, e esses mambembes faziam sucesso pelo interior do Brasil. Decidi que, um dia, faria o mesmo e conseguiria bater o “record” mundial de permanência sobre o selim; a partir de então, passava horas girando com minha bicicleta em torno da velha mangueira lá de casa, deixando minha mãe desesperada com minhas loucuras.

Não bati nenhum “record”, mas desenvolvi minhas habilidades na “magrela”. Gostava de percorrer, em desabalada carreira, as ruas da cidade, descendo ladeiras e fazendo curvas “impossíveis”, até que me “ralei” todo numa queda no asfalto da avenida. Mas criança não tem memória, e poucos dias depois eu voltava a me aventurar nessas corridas inconsequentes.

Assim, a bicicleta fazia parte de minha vida, trazendo-me oportunidades de viver os dias sobre duas rodas. Às vezes desafiava meus primos a seguir pela estrada comigo até os municípios vizinhos, sem o conhecimento de minha mãe; como eles não iam, seguia sozinho. A bicicleta era minha companheira nesses momentos de solidão. Gostava de “pensar em movimento”, meditação dinâmica que cultivei ao longo de minha vida, e que foi de grande valia pelas dificuldades que tinha em conviver com os outros meninos de minha idade.

Acho que a bicicleta e, depois, a canoa, foram os paliativos de minha solidão. Nunca me importei muito com isso, pois acabei gostando de compartilhar meus pensamentos apenas com meus companheiros invisíveis, que povoaram minha imaginação. A bicicleta esteve sempre presente, e eu costumava “conversar” com ela enquanto andava sem destino, soltando as mãos, subindo no selim, fazendo pequenas acrobacias com esse meu instrumento de manifestação de meu poder pessoal, nunca compartilhado com a “turma” que não existia.

Ainda tenho uma bicicleta e, mesmo hoje, nos meus sessenta e um anos bem vividos, não perdi a mania de andar nos meus limites, correndo pelas ruas dessa pequena cidade do Amazonas, sem me importar com o que se passa em meu redor. Mas terei que deixá-la aqui, ao me transferir para a Capital do país, pois minhas bagagens já ultrapassaram de longe minha capacidade de transportá-las. Sentirei sua falta, mas logo encontrarei outra inseparável companheira, estou certo disso, e continuarei compartilhando com ela meus sentimentos mais profundos, discretos e silenciosos.

MADRASTA SOLIDÃO

Vejo-a com meus olhos de menino

Encantado por sua dedicação
E nada fiz por merecê-la
Simplesmente existi

Vejo-me pelos seus olhos pequeninos
Embaciados pela vida que passou
E nada fiz por recompensá-la
Pois só cuidei de mim

Enclausurada em sua solidão sem fim
Não a encontro mais perto de mim
E nada posso fazer por revivê-la
Senão fechar os olhos

…e adormecer também…

Eu e meu Pai Ulysses, em 2002

Hoje ele teria quase 94 anos; porém, há dez anos nos deixou para sempre. Meu pai se foi antes do tempo, assim como se vão aqueles a quem amamos e respeitamos pela sua coerência, sabedoria, humildade e LUZ! Sim, ele foi o farol de meu caminhar, e continuará sendo. Sempre que me encontro em uma encruzilhada, inseguro, incerto, pergunto a meu pai qual a direção a seguir. Por algum mecanismo que desconheço, a resposta vem durante meus sonhos, como um sussurro, uma imagem desfocada, um sopro suave de ideias que me restituem a confiança e a certeza de ter encontrado o rumo. E sigo em frente, confiante de  que o meu Mestre continuará me orientando e me ajudando a tomar as decisões corretas para o resto de meus dias.

Lembro-me da paciência com que ele nos preparou para a vida, deixando seu exemplo de uma conduta impecável, de Ética e de Honestidade acima de qualquer outra possibilidade. Assim como eu sigo seus passos, espero que, quando eu me for, as minhas filhas e meus netos tenham em mim um bom exemplo para clarear os seus caminhos. Que os exemplos de nossa sociedade não influenciem meus descendentes, pois a cada dia se torna mais difícil encontrar pessoas dignas e honestas. Assim como meu pai, eu não tenho apego a lugares ou a valores materiais. Para muitos, seria uma irresponsabilidade e uma temeridade, pois acreditam que acumular dinheiro e propriedades é a essência de sua ideologia consumista. Para mim, o caminhar tornou-se leve, pois nada carrego além de meus valores e de minhas convicções. E isso eu devo ao meu Mestre, Ulysses.

Minhas referências são as pessoas que amo, e meu pai terá sempre seu lugar de destaque em minha vida. Dele herdei o amor à Natureza, aos seres vivos, ao rio onde costumávamos remar e apreciar o por do sol, às caminhadas sem destino, que eram a fonte de novas descobertas e de novas reflexões. Seu carinho e compreensão fizeram de mim um ser mais tolerante, embora mais inflexível quando estou diante de injustiças ou situações inaceitáveis para minha consciência.

Meu pai querido, por mais que tenhamos sido grandes amigos e companheiros, é muito difícil não ter mais sua companhia para me confortar… sempre que faço algo de que me orgulho, penso em você e agradeço seus ensinamentos. Afinal, quem teve o privilégio de ser filho de um ser espiritual, cuja sabedoria está além dos livros sagrados, cujos exemplos são tantos e tão expressivos que não precisaria recorrer a nenhuma doutrina ou religião? Um Homem que nos encantou a todos pela sua simplicidade e bondade?

Pai querido, quisera acreditar que a vida não se encerra com a morte, que eu ainda terei o privilégio de te reencontrar, mas isso também seria trair os seus ensinamentos. O aqui e o agora são os únicos momentos conscientes e reais de nossa existência. E não precisei de um Mestre Zen para compreender essa verdade. Por mais que seja difícil saber, não tornaremos a nos encontrar, mas ainda guardo em mim a felicidade de tê-lo conhecido, de ter bebido na fonte de seus ensinamentos, de preservar em minha memória, enquanto eu existir, sua imagem, suas lembranças, suas palavras e seus ensinamentos. Não preciso de mais nada…

Dia 1º de fevereiro passou em “brancas nuvens”… aniversário de vida de nossa querida mãezinha… mas não foi por desatenção que não te levei flores, mãe querida; foi por absoluta falta de opções! Estava em outras plagas, lutando por um povo Xavante, de quem lhes tiraram tudo, assim como tiraram de mim as lembranças de minha mãe…

DSCN1447Sempre soube que esse dia seria difícil para mim, pois o meu aniversário sempre se uniu ao dela pela coincidência de datas e também pelo nosso afeto recíproco e sincero. Quase não me lembro de algum ano que não estivéssemos juntos nestas datas. Por isso me neguei a comemorar a minha parcela desses dias, e permaneci calado.

Mas todos os dias me lembro de minha mãe e de meu pai, pessoas que deram significado à minha vida. Lembro-me, na solidão dos momentos em que me escondo deste mundo, e também no burburinho inconveniente do palavrear que sempre me incomodou. Se sou assim, devo-o a mim mesmo, pois Dinorah sempre gostou de festas, das aglomerações, da música e das danças, coisas que me abominaram e afastaram-me do convívio social.

Em novembro e dezembro estive em São Paulo, ocasião em que visitei alguns cemitérios (Rebouças, Araçá, São Paulo), não porque lá estivessem pessoas queridas e esquecidas, mas pelo simples prazer de reverenciar aqueles que já se foram. Penso que assim me acostumo com o esquecimento que um dia me levará também. Bem o sei que assim será.

Não deixei flores pelos jazigos, mas retirei deles alguma memória nas fotos que registrei. Para muitos, este seria um prazer mórbido, mas não existe prazer nas sepulturas, apenas o silêncio eterno. Por isso estava lá, para relembrar meus pais queridos, lamentar suas ausências e compartilhar a vida que se seguiu à sua partida.

Este ano não te levei flores, mãe querida, mas meus olhos denunciaram minha tristeza e solidão; tristeza profunda, indizível, soluço extremo que retira o fôlego e suspende a vida por alguns momentos quase eternos; solidão extrema, ausência de algo (ou de alguém) que nunca mais retornará. Tristeza e solidão que refletem minha perplexidade diante do absurdo de ser pensante e impotente diante desse paradoxo que é a vida, seguida de sua morte, ausência definitiva e irreversível…

Guardo, porém, para mim apenas, a sensação de que um dia compreenderei o que não pode ser compreendido. E nesse instante efêmero de iluminação (satori), deixarei que a vida se esvaia em meu Ser para se integrar ao Infinito.

Dinah e Ulysses

O tempo se esvai na correnteza dos fatos cotidianos, ofuscando, injustamente, as lembranças de nossos antepassados. Nossas memórias se distanciam, nossas homenagens se ajustam ao calendário, nosso amor e carinho com os que se foram ficam restritos às esparsas orações que o pensamento embotado faz àqueles que justificaram a nossa presença neste mundo. Para reviver algum vestígio de nossos pais, compartilho dois símbolos muito expressivo de suas presenças em nossas vidas.

 Ulysses, mesmo em seus últimos instantes entre nós, jamais deixou de oferecer flores à nossa mãe Dinah, como ele costumava chamá-la. As rosas eram suas preferidas, tanto pela beleza estética de suas pétalas a se entrelaçar harmoniosamente, como pelo simbolismo da mandala evidenciado no leque perfeito de seu desabrochar. Nossa mãezinha teve o privilégio de receber, na noite da transição de Fernandino, como ela o chamava, um presente inesquecível: na porta do seu quarto, um bouquet de rosas vermelhas se formou, iluminando todo o quarto; aos poucos, essa visão, assim narrada por ela, explodiu em miríades de pontos de luz, qual estrelas em uma noite límpida, e se derramou sobre nossa mãe, demonstrando o imenso amor que a ela nosso pai manifestava.


  Ulysses era um homem sábio: humilde, discreto, atencioso e culto, tinha, pela Natureza, um imenso respeito e admiração. Fomos contaminados por esse gene do Bem, e para o resto de nossas vidas continuamos a respeitar e reverenciar as mais belas criaturas do Universo. Quero, por isso, homenageá-lo com esta bela paisagem (um micro-universo de mangue na 5ª praia de Morro de São Paulo), assemelhando-se a um Bonsai, árvore madura e sólida, embora pequena e sagrada, o símbolo que atribuo ao meu pai. Hoje é um dia comum, irrelevante para a eternidade do Cosmo; por isso escolhi este momento para reverenciar meus antepassados mais próximos, que me trouxeram à vida, cuidaram de mim com carinho, ensinaram-me suas sabedorias humanas e esotéricas, e me indicaram o caminho a percorrer. Espero deixar para minhas filhas a imagem de um pai dedicado, apaixonado e honesto aos meus princípios e ética social. Quem sabe, um dia, eu venha a merecer uma singela homenagem por meu amor a elas…

Eu e Ulysses

Ulysses faria hoje 92 anos… ele se foi há 8 anos, 5 meses e 21 dias, mas ainda sinto demais sua falta em minha vida. Cada vez que algum problema me perturba, invoco a presença de meu pai, que sabia sempre me dar um bom conselho. Sempre que realizo algo muito bom, que me envaidece e do qual me orgulho, agradeço a ele pela formação que me deu, e a ele dedico meu sucesso. Meu pai é uma presença constante em meu caminho… hoje, que estou só, talvez saiba melhor a dimensão dessa perda irreparável, mas agora é tarde demais para compreendê-lo. Felizmente, quando ele ainda estava entre nós, já era meu melhor companheiro, e acredito tê-lo respeitado e admirado em vida, como agora o faço, depois de tantos anos.

Ele me ensinou muitas coisas, mas talvez seu maior legado tenham sido a dignidade e a humildade, valores supostamente desaparecidos de nossa realidade contemporânea. Ensinou-me a ser paciente, mesmo quando tudo parecia estar desabando ao nosso redor. E foi assim que consegui superar as adversidades que quase nos derrotaram tantas vezes em nosso caminho árduo! E depois, passada a tempestade, constatávamos que aquela gigantesca onda que ameaçava nos afogar, era apenas uma pequena marola na imensidão de nossas vidas. Não foi fácil, mas crescemos muito com tantas provações.

Hoje, passados esses anos, eu ainda o vejo em meus sonhos, ainda converso com ele em meus momentos de solidão, ainda recebo suas bênçãos em minhas orações, apartado de Deus. E sei que mais do que ter uma crença, uma religião, é preciso ter valores, princípios, retidão de caráter, mesmo que para isso seja necessário abdicar das vantagens que percebemos, ainda que por pleno merecimento. Aprendi com meu pai a me desfazer do supérfluo, sem sentir remorsos nem tristezas pela perda voluntária. E dessa maneira meu caminhar se tornou mais leve, ainda que não mais feliz, pois falta-me ele, meu pai querido.

É provável que as gerações mais recentes nem saibam a dimensão desse sentimento, pois o mundo se tornou árido, oportunista, imediatista, egoísta demais para todos nós. Mas continuo meu caminhar, certo de estar seguindo seus passos. Ulysses nunca deixou de manifestar suas opiniões, e muitos o consideravam ingênuo ou simplório por isso. No entanto, sua conduta reta e impecável era reflexo de sua sabedoria, qual um monge budista a quem nada ou ninguém poderia atingir, ferir ou humilhar. Diante das incompreensões, ele apenas sorria, fingindo não perceber a maldade proferida.

Creio que nenhum homem jamais amou e respeitou tanto sua mulher como meu pai à minha mãe. Mesmo quando sua saúde já se encontrava abalada demais para ele sorrir, levantava-se cedo, ia ao jardim, colhia uma flor e entregava a ela com ternura. Ocultava suas dores e sofrimento, carregando aquele fardo da doença que o dilacerava por dentro, mas era capaz, mesmo nos piores instantes, de brincar com um neto, contar uma piadinha sem graça mas que, em sua singeleza, parecia divertida e generosa.

Meu pai Ulysses, meu caro amigo de todos os momentos, tuas lembranças estarão sempre comigo…

Minha primeira infância foi em Dracena, cidade próxima à fronteira de São Paulo com Mato Grosso (hoje, Mato Grosso do Sul), perto de Panorama, às margens do rio Paraná. Fomos algumas vezes a esse lugar, e lembro-me (porque me contaram) que ainda era um local selvagem, com densas matas às margens do rio, onde se avistavam onças pintadas e seus rastros pelas estradas e trilhas; do lado matogrossense dizem que havia até uma tribo indígena… hoje, pesquisando nos mapas da FUNAI, constatei que existe, de fato, a Terra Indígena Ofayé-Xavante nessa região.

 

Havia um hotel de madeira, construído sobre palafitas, onde nos hospedávamos. Em épocas de muita chuva o hotel ficava parcialmente sobre as águas do rio. A estrada para Panorama era de terra e, nos dias de chuva, repleta de muito barro, onde os carros atolavam com frequência. Mas tudo isso são lembranças dos outros, pois quase nada ficou em minha memória. Sei que atravessávamos o rio dentro de uma balsa, uma grande plataforma de madeira sustentada sobre as águas por barris de metal. Devia ser uma aventura incrível fazer essa travessia, pois a correnteza do rio é muito forte e perigosa, e nem imagino como nossa mãe teve coragem de fazer isso! Acho que herdei dela e de meu pai esse meu espírito aventureiro…

De Dracena tenho mais recordações, pois moramos lá até eu completar nove anos. Minha mãe era professora em uma escola pública de madeira, construída sobre pilares, deixando um amplo espaço sob as classes, onde as galinhas ciscavam e largavam suas penas e piolhos, inimigos das professoras, a quem cabia controlar o asseio e a saúde de seus alunos. No meio do pátio ficavam as “casinhas”, pequenos banheiros feitos também de madeira, cubículos com um buraco no chão onde fazíamos as necessidades, e de onde provavelmente saía um mal-cheiro insuportável.

Dinah e EuMinha mãe e Professora foi quem me ensinou as primeiras letras. Lembro-me da cartilha “Caminho Suave” e dos painéis ilustrados, que ela utilizava para nos orientar na grafia das palavras. Era uma professora enérgica e dedicada, que nos ensinava o respeito aos livros e o gosto pela leitura. No início do ano ela encapava os cadernos e livros das crianças, com todo cuidado. As salas eram enormes, com mais de 40 alunos, sob um calor insuportável, e com crianças do povo, de todos os níveis sociais e econômicos. Naquela época só havia a opção das escolas públicas que, no entanto, eram excelentes!

O diretor da escola era um déspota, que ficava vermelho de raiva por qualquer motivo, e colocava os alunos de castigo, de pé, com os braços abertos, e um monte de jornais em cada mão, até que o menino os deixasse cair por exaustão. Aí vinha a palmatória, uma lambada que deixava as marcas vermelhas na pele e as chagas no coração. Isso era normal naqueles tempos: bater, castigar, humilhar… hoje seria considerado “bulling” e daria cadeia e expulsão do diretor, com certeza! Felizmente, eu era um aluno exemplar e nunca fui levado à presença desse ser execrável e nojento…

Eu ainda me lembro da igreja, onde íamos todos os domingos, de charrete puxada a cavalo, vestidos com nossa melhor roupa. Essas charretes eram os vestígios das carruagens nesse mundo em transição. A igreja era uma construção grande, inacabada, ainda com os tijolos à vista, sem pintura e sem reboco.  Aos meus olhos de criança parecia uma Basílica imensa, com sua abóbada arredondada bem na parte central da igreja. Hoje, vendo sua foto, vejo que era, de fato, muito grande e imponente! Parece-me que ela ficava no alto de uma colina, o que a tornava majestosa para uma cidade tão pequena.

Dracena tinha uns dez anos de existência e menos de 10 mil habitantes.  Boa parte dos moradores eram descendentes de japoneses, agricultores ainda muito apegados às suas tradições orientais, falando sua língua natal e preservando costumes estranhos para nós, como comer peixe cru e usar palitos de madeira em lugar de talheres. Lembro-me de uma grande festa que houve na cidade, para comemorar os cinquenta anos da imigração japonesa, em junho de 1958.  Jogavam “baseball”, esporte introduzido pelos americanos depois da 2ª guerra; trouxeram artistas do Japão, que dançavam com aquelas vestimentas coloridas (kimonos), ao som de músicas que me pareciam desafinadas e desagradáveis ao ouvido, mas que marcaram de tal modo minha infância que determinaram minha paixão por esse povo para o resto da minha vida: meu casamento com uma japonesa, meus estudos da língua, da literatura, da história, do zen-budismo e da cultura do Japão, minhas melhores, mais sinceras e duradouras amizades, minha dedicação às lutas marciais orientais e meu respeito por um povo que eu acreditava ser de uma civilização milenar, mágica e fantástica! Hoje eu sei que eles não são tão fantásticos assim… principalmente pela caça inclemente às baleias!

Minha mãe cuidava de nós com amor e carinho: acompanhava nossos estudos, preparava as aulas, e cuidava da nossa casa como se fosse uma exposição: tudo impecavelmente limpo, apesar das fortes ventanias e da poeira incessante na cidade. Meu pai era o Contador da agência do Banespa, profissão que desapareceu com a informatização bancária. Era um homem admirado e respeitado pelo seu caráter inabalável, sua dedicação ao serviço e sua honestidade à toda prova. Isso nos inspirou a vida inteira.

Éramos assim, felizes, e vivemos uma infância que poucos tiveram a oportunidade de conhecer. Lembro-me da minha primeira bicicleta e dos passeios que fazíamos, em grupo, percorrendo a cidade. Quando a ferrovia chegou a Dracena nós acompanhávamos com grande expectativa a construção do aterro e da estação, onde íamos disputar loucas corridas, despencando pelas bordas de terra e nos arrebentando no chão, rindo dessa insanidade controlada… acho que, fora os arranhões frequentes, nunca nos machucamos para valer. Depois, descansávamos à sombra dos barracões da ferrovia, sentindo a suavidade da brisa fresca em nossa pele.

Os trens fizeram parte de meu imaginário durante muitos anos; sonhava em ser, um dia, o maquinista de uma locomotiva; ouvia histórias incríveis e tínhamos um disco chamado “O Menino e o Trem”, cuja história falava dessa paixão infantil por aquelas máquinas fantásticas e seus condutores heroicos… Uma melodia ficou guardada em minha memória: “Chegar… partir… passar… o trem, o trenzinho na estação! Alegres os que vêm, alegres os que vão! Adeus! Adeus! Adeus! Chegar… partir… passar… lá vem o trem… lá vem o trem… o trem chegou! Lá na curva apitou, o céu esfumaçou… lá vem o trem… lá vem o trem… o trem chegou!” …até hoje tenho grande admiração por essas estradas de ferro por onde passamos tantas vezes, em bancos de madeira, nos vagões de restaurante, nas cabines de leito “Pullman” da Cia Paulista de Estradas de Ferro, empresa inglesa que se notabilizou pelos serviços impecáveis e pontuais… lembro-me olhando pela janela do trem e vendo a fuligem incandescente saindo da chaminé, a percorrer os caminhos de ferro, riscando o céu com suas pequenas brasas avermelhadas… e o apito a tocar! “piuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii… tchu tchu tchu piuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii… tchu tchu tchu”… que lembranças fantásticas!

Um dia, o prefeito de Dracena, Pezzolatto, resolveu construir uma fonte luminosa; deve ter gastado metade do orçamento da cidade, mas o resultado foi um espetáculo de águas, luzes e sons que atraiu e encantou toda população da cidade na noite de sua inauguração. No dia seguinte, porém, a molecada transformou a fonte luminosa em uma piscina imunda, que causou uma epidemia de doenças e diarreia nas crianças! …e manifestações exaltadas da população pedindo a destituição do prefeito, sob o slogan gritado aos quatro cantos: “Fora, Pezzolatto!”.

Morávamos em uma casa grande (a última antes de nos mudarmos de Dracena), onde criávamos galinhas e passarinhos, como todo mundo, e tínhamos um cachorro, o Teco, nosso amigo inseparável. Teco era um cachorrão que adorava a criançada, apesar de às vezes ser maltratado pela insanidade infantil. Mas ele nunca revidou essas agressões. Nossos vizinhos eram um médico, doutor Pedro, que tinha dois filhos (que eu me lembre): o Pedro Carlos e outro cujo nome já se perdeu em minha memória; um agrônomo, doutor Aldo, e seu filho Audinho; o caixa do Banespa, o “seu” Cid, e sua filha, a Dorinha, meu primeiro amor. Vivíamos praticamente em família: comemorávamos o Natal, o Ano Novo e os aniversários… Natal era uma festa inesquecível para as crianças, pois sonhávamos em ver o Papai Noel…

Em Dracena não havia luz elétrica; apenas um motor de navio que dava energia umas duas horas por dia. Usávamos lampiões de querosene, do tipo “Aladim”, com um vidro bojudo embaixo, afinando-se em uma curva suave até o alto, com uma abertura de ventilação em cima; dentro dele, a “camisinha”: uma telinha de tecido que se tornava incandescente ao ser acesa. Vivíamos nessa penumbra, que dava um ar de eterno romantismo às nossas casas. Mas à noite costumávamos brincar de “pique” na rua, à luz da lua e das estrelas, e de caçar vaga-lumes para fazer lamparinas, enquanto nossos pais se sentavam com os amigos nas cadeiras, conversando e apreciando aquele céu estrelado e imenso, com a Via Láctea percorrendo e iluminando toda sua extensão. Apenas a claridade das estrelas bastava para iluminar a rua; mas em noites de lua cheia, o espetáculo era incomparável!

Meus avós viviam conosco: Candinho e Mariquinha, cada um com suas manias e histórias para nos contar. Vovô Candinho tocava violão de doze cordas e cantarolava suas modas de viola; meu avô também costumava fumar seu cigarrinho de palha de milho, que ele mesmo enrolava com aquele fumo de corda que fedia insuportavelmente e empesteava toda a casa, para tristeza de mamãe… Um dia, meu avô ficou senil e perdeu a memória… perdia-se pelas ruas, e nossos amigos o levavam de volta para casa. Ele tinha uma maleta de couro preta onde guardava seus remédios… não sei para que tantos, mas era uma peça inseparável de seu guarda-roupas. Vovó Mariquinha contava histórias sem fim de sua infância mineira, na Serra da Bocaina, em Aiuruoca, sentada na máquina de costura onde fazia e consertava roupas para toda a família. Descrevia cenas das cheias dos rios, que levavam tudo de roldão: casas, bois, móveis, árvores… tudo boiando, em uma narrativa enriquecida pela sua imaginação fértil e encantadora! Ela se casou aos treze anos, quando ainda brincava de boneca, e teve treze filhos. Mamãe era a caçula das mulheres…

Da esquerda para a direita (apenas os adultos): Neuza, Totinho, Bebé, Isaura, Ulysses,Dinah, Lamartine, Zizinho, Mariquinha, Odila, Lili, Vera e Chiquito.

Em Dracena havia um mercado que atravessava de um lado a outro da rua, com suas quitandas, açougues e lojinhas de bugigangas, onde passeávamos, ora com minha mãe, ora com vovó ou vovô. Também havia um brejo, onde os sapos coachavam nos fins de tarde, fazendo uma algazarra, e onde pegávamos taboa para enfeitar os vasos de mamãe. Tudo isso fazia parte de nossas vidas, assim como o ferro de passar roupas, que funcionava com brasas de carvão, o torrador e a máquina de moer café, a geladeira de querosene, com um motor redondo em cima dela, parecendo um robô, tudo de uma simplicidade espartana, mas que nos satisfazia em nossa simplicidade e modéstia de gente simples do interior.

Todo mundo tinha um rádio em casa, que ficava ligado o dia inteiro, irradiando as notícias da cidade, as fofocas e as músicas caipiras. Mas meu pai tinha algo diferente: ele era rádio-amador! Tinha um aparelho enorme, que era o transmissor, um rádio para sintonizar a frequência, tudo ligado a um enorme varal de cobre de 40 metros (o comprimento das ondas de rádio), que funcionava como antena de transmissão, estendido sobre o telhado da casa, entre dois postes. Essa sala onde ficavam seus equipamentos era conhecida como “Shack”, onde ele recebia os amigos, vizinhos e quem quisesse se comunicar com pessoas distantes. A telefonia da época era muito precária: funcionava com enormes pilhas e uma manivela que, ao girar, acionava a central telefônica da cidade. Lá as telefonistas se encarregavam de fazer as ligações, que costumavam demorar horas para serem completadas, quando era um interurbano. Daí a importância e a função social do rádio-amador.

O prefixo de meu pai era PY2-AGY, fornecido pela LABRE, Liga de Amadores Brasileiros de Rádio Emissão. Com esse equipamento meu pai falava com o mundo inteiro. Quem se comunicava assim costumava trocar grandes cartões com nome, prefixo, cidade, estado e país de origem, que funcionavam também como cartões postais. Meu pai tinha centenas deles em seus arquivos. Havia uma linguagem de código usada por eles, onde “cristal” representava a esposa, “carvão” o esposo, “diamante” era o pai, “cristaloides”, os filhos, “turmalina”, a namorada, “tubarão” uma estação potente, além de muitas siglas para comunicar o entendimento e a sequência das mensagens. Meu pai também, às vezes, usava o telégrafo, que aprendera quando trabalhou para os Correios, junto com o código Morse, composto de sinais sonoros curtos e longos alternados, muito comum durante a 2ª guerra mundial.

Um dia, meu pai foi procurado para ajudar na busca de um piloto da cidade, desaparecido em um voo para o Paraguai. Havia um grupo de radioamadores que se reuniam diariamente para troca de notícias, e eram conhecidos como a “Rodada da Amizade”. Meu pai comunicou o fato aos amigos e, depois de muitas buscas pelos locais onde poderia ter passado o pequeno avião, descobriu-se que ele tinha caído em Mato Grosso, e todos os ocupantes estavam mortos. Os contratantes do voo eram contrabandistas, segundo revelou, depois, a polícia. O piloto do avião era também o técnico que consertava, eventualmente, o motor de navio que funcionava como gerador de energia elétrica da cidade.

Essas lembranças esparsas compõem o mosaico de minha infância…

Eu e a Camo colecionávamos figurinhas e tampinhas de garrafas, brincávamos com estilingues de forquilha de roseira e bolinhas de gude, e meu pai fazia nossos brinquedos com carretéis de linha, rolamentos de rodas, pranchas de madeira, pipas (papagaios) de bambu e papel de seda, e assim vivíamos na simplicidade que o homem perdeu com o tempo e se esqueceu de como era gostoso confiar nas pessoas e não ter maldades no coração. Quando meus pais decidiram ir embora de Dracena, também resolveram que o Teco, nosso cão, não poderia ir junto, pois seriam centenas de quilômetros de viagem. Meu pai deu o cachorro para um agricultor, que o levou para sua fazenda, alguns meses antes de nossa mudança. Choramos muito mas, depois de algum tempo, até havíamos nos conformado, quando soubemos que o Teco fugira da fazenda e tentara voltar para nossa casa… Teco foi um amigo fiel e insubstituível…

Talvez hoje as pessoas nem consigam imaginar uma vida assim… talvez essa vida lhes pareça monótona e desinteressante… mas éramos felizes como ninguém pode ser hoje em dia, nessa sociedade em que o celular, a internet e a televisão são essenciais para a sobrevivência da espécie humana! Mas não existe mais a sinceridade, requisito primordial para as relações verdadeiras… talvez por isso nossa sociedade seja apenas virtual, falsa, efêmera em suas relações… falta o cafezinho na casa dos amigos, falta o abraço espontâneo e sincero, falta a solidariedade desinteressada, falta o calor da emoção vista nos olhos! Talvez por isso o mundo tenha se tornado insuportável (“insustentável”) e hoje lute, desesperadamente, pela própria sobrevivência!